Um microconto de natal

Ele avançou com o carro para a vaga, quase batendo no outro veículo que esperava havia uns três minutos, como a seta ligada, e, pelo retrovisor, viu a boca da motorista xingá-lo. Desligou o carro, pegou o celular e começou a ver um vídeo publicado num grupo de mensagens. Abriu a porta e sentiu o ar pesado, quente e sufocante. O shopping estava cheio para as compras de natal. Caminhou apressadamente em direção a entrada até desacelerar quando sentiu o ar fresco do interior. Encostou-se num canto de uma vitrine e reviu mais uma vez o vídeo, um trecho de uma entrevista do político que apoiava. Abriu a pequena lista de compras feita pela esposa, suspirou e mergulhou no fluxo de pessoas e sacolas, desviando delas com agilidade. Havia filas para tudo, e foi assim que se passaram quase duas horas, mesmo com sua rapidez para encontrar os presentes nas lojas. 

— Boas festas, senhor!

— Feliz natal. Fe-liz na-tal! — respondeu para a jovem do caixa, na última loja.

Continue lendo “Um microconto de natal”

Notes before departure

Siegessäule, Tiergarten Park. Berlim, julho de 2007.

The Continent
There was no knock on the door; the explosion came while we were preparing for the holidays. Dad stood in the corner, rattling his keys, while Mum called to us from the doorway. No one could hear our voices or screams. We were thrown, like lightning, into nowhere. The war still exists. There are killers everywhere, watching our fear and listening to our breathing, but no one is listening.
\\

Continue lendo “Notes before departure”

O cemitério ao lado

É fim de maio. O calor infernal passou e o inverno chegará, cansado e fraco, para uma breve visita. Às vezes, os ventiladores ainda são ligados em casa. O ar-condicionado portátil está guardado, finalmente. Nesta cidade, reclamam quando a temperatura faz uma descida passageira para os quinze graus. As ondas passageiras de frio, são tudo o que sobrou. O inverno não é mais uma estação do ano. Ou será que foi algum dia? Três meses? A sala de espera do consultório médico está cheia de gente com casaco, o ar-condicionado está desligado, o sol entra pela lateral toda envidraçada, são duas horas da tarde, e aqui dentro deve fazer uns vinte e poucos graus. Pego minha receita e volto passando pelo cemitério. Paro diante da entrada e finjo ler o aviso pendurado à parede enquanto ouço dois senhores: Vê este lugar? A melhor parte da cidade. Todos calados. E tem essas árvores e esculturas. Natureza e arte para quem tanto as desprezava. Belas árvores, não? As esculturas, mesmo sujas, são magníficas. Extraordinária é a natureza. E tão misericordiosa. Suas terras, como um coração de mãe. Após um breve silêncio, viro para os dois, que já não estão mais ali. Olho ao meu redor e quando retorno o olhar para a entrada, vejo o portão fechado. Agora presto atenção no aviso, que informa o novo horário de funcionamento do cemitério. Bato a mão no bolso traseiro da calça para me certificar de que minha receita médica está ali e sigo o caminho, com o suor escorrendo pela testa, pelas costas.

Dois curtas

1.

Às vezes, pode ser assim: o verão traz a chuva, e eu visto suas tempestades, um vestido de noiva. Está escuro em Beirute. As ruas da cidade estão cheias, um cortejo fúnebre, os mortos nunca foram enterrados. Permaneço acordada. Ontem à noite, sonhei que eu sangrava e que você esfregava no meu corpo o sal raspado da superfície de Vênus. Comecei a brilhar e você me disse: “Pode ver? Tudo está melhor agora”. Espalho o resto do sal pelo mediterrâneo, observo o mar recuar, levando as coisas que amamos. Pode ver? Tudo está melhor agora. Precisávamos apenas devolver o nosso sal para a água.

Lara Atallah. https://bahrmagazine.com/tiger-balm-lara-atallah/


2.

Esta noite, o homem morrerá. De algum modo, a cidade já parece resignada, o crepúsculo plano de Beirute, fora do comum, nublado, uma imobilidade peculiar ondulando as árvores como vento. É fácil vestir a terra para a dor do luto, e esta noite os pássaros empoleirados nos emaranhados de fios de eletricidade parecem enlutados com suas penas pretas e brancas, sem canto, olhando para baixo, o concreto do campo de refugiados.

Opening lines of the novel The Arsonists’ City, by Hala Alyan.